No último trimestre de 1971 tive oportunidade de conhecer Nauela. Na altura o engº agrónomo Frazoa, dirigente da Delegação de Quelimane do então ICM - Instituto dos Cereais de Moçambique, promoveu uma formação prática versando a defesa dos solos agrícolas contra a erosão. As tarefas tiveram a duração de uma semana e decorreram exactamente na envolvência daquela localidade. Assim, acompanhando o colega Guimarães, responsável pelo Posto de Recepção do ICM em Mocuba, pude participar na formação em apreço que primou por um assinalável aperfeiçoamento de conhecimentos naquele domínio, garantindo-me mesmo a sua abordagem, como tema complementar e enriquecedor, no relatório de estágio obrigatório relativo ao curso que finalizara entretanto.
Então, inexorável, o tempo acrescentara já uma dúzia de anos à apaixonante mas dramática gesta do cultivo do cafezeiro naquela região que, ao longo dos anos 50, sustentou um ciclo de vertiginosa expansão daquela rubiácea, anteriormente referenciada como cultura sem tradição em Moçambique, confinada a áreas marginais e com produções insignificantes, pese a particular visibilidade do "Coffea racemosa", espécie espontânea nas áreas arenosas a sul do Save.
Efectivamente, a partir de 1950 o marasmo reinante foi fortemente beliscado pelo inconformismo humano e nas alturas da Zambézia, onde o planalto se desfralda desafiante, a 700-800 metros de altitude abençoado por condições ambientais de eleição, despertaram sonhos arquitectando outros horizontes. Localidades como Gurué, Tacuane e Milange tornaram-se palco fértil para destemidos pioneiros, mas foi em Nauela que os mais intrépidos, refinando a audácia por veredas sinuosas, procuraram o rumo da perfeição. E em menos de 10 anos, sob o aconchego da serrania, a esperança de alguns emergiu pujante na generosa natureza, tendo como bandeira a espécie "Coffea arabica", aprimorada com paixão nas courelas da Boa Esperança, exploração de Adrião de Faria Gonçalves, considerado o principal pioneiro da espécie na região.
Nauela, enriquecida por uma panorâmica esplendorosa, trajou então cenários de deleite que cativaram a vista e enamoraram a alma. Tarquínio Hall, em desvelado artigo, ajuda-nos a compreender aquela época.
Do trabalho intitulado NAUELA E A CULTURA DO CAFÉ «ARÁBICA» OU «ROBUSTA», na época publicado no Notícias, de Lourenço Marques, fragmento das considerações do agricultor da região Sr. Tarquínio Hall.
Nauela é o varandim da Alta Zambézia. Fincada nos píncaros da serra Inago, nada em redor impede a vista de se alargar na linha do horizonte senão a mancha vaga dos picos Namuli, a muitas léguas de distância. E só em dias de céu varrido; porque basta um farrapo de nuvem ou a mais ténue neblina para apagar a cabeça do monstro.
Estamos a perto de mil metros acima do nível do mar, com o corpo aliviado dum peso que desconhecíamos. Há uma força estranha que quer suspender-nos no espaço. E quanto mais essa força guinda, mais leve e fresco se apresenta o cérebro, mais ágil o raciocínio e mais nítida a imaginação. Apenas um zumbido antipático insensibiliza os tímpanos ao mundo dos sons. Mas não é a cantilena das cigarras nem o gorjeio da passarada que neste momento interessa tanto: o que prende e surpreende é a configuração do planalto que alastra na tangência dos raios visuais; o gume dos picos que circundam as alturas - o seu perfil amórfico, disforme, a evoluir em planos sequentes na linha quebrada das cumieiras; a confusão de traços oblíquos, de riscos horizontais (bordados, torcidos, mordidos) que decalcam o desenho em que se desenvolve a panorâmica.
Que cenário maravilhoso! Perto, tudo são ondulações irregulares que o cafeeiro sobe e desce em socalcos simétricos que as copas escondem e a erosão não vence; só longe figuram as primeiras manchas florestais e mais longe ainda a silhueta desbotada doutras tantas serranias. E que clima admirável para o colono europeu se dar todo inteiro ao torrão criamoso! É que faz frio neste planalto tinto de verde, com casas novas a branquejar nas rendas das aleurites e manadas preguiçosas mordiscando a relva fina: nos meses de Junho a Agosto há dias em que o mercúrio quase ronda o zero centígrado.
Aqui, sim, é verdadeira montanha, com ar fresco nos pulmões, nos poros, no próprio sangue! Às vezes os olhos cegam no encontro inesperado de verdadeiras chagas de luz; e, por instantes, regressam ao pensamento voltado à Pátria-Mãe imagens que havíamos esquecido no turbilhão de uma vida e que a lei da semelhança só agora aproximou: o Marão, com seus anfiteatros e seus vales sempre verdes; a Estrela e as suas neves; a Beira Alta, com suas serras e as suas aguarelas tão vivas como se tivessem saído agora mesmo da pena de Silva Gayo. Era tudo, afinal. Aos planaltos de Nauela apenas faltava o ornato dos monstros megalíticos que trilham a terra desnuda, sobem da Lagoa Comprida às Penhas Douradas e rebolam na vertente até junto de Manteigas; e ainda a azinheira, o pinheiro débil, atrofiado pela neve, a urze, o tojo e a giesta. Mas a configuração do solo era idêntica: uma massa imensa, enrugada, amarfanhada pelas mãos do Criador. Sim, aquelas terras falam da Metrópole tão eloquentemente que quase lhes escutamos a voz. Daí a profunda nostalgia que se nos apoderou da alma quando o pensamento iniciou o desbobinar retrospectivo do filme da saudade.
FONTE : - Boletim Geral do Ultramar, Nº 370, Vol. XXXII, 1956
Nos primórdios de 1959, nas zonas de montanha, o cultivo do cafeeiro em Moçambique rondava já uma área próxima dos 5.000 hectares, incidindo maioritáriamente na Alta Zambézia.
Nesse mesmo ano um talhante despacho do então Ministro do Ultramar determinou a extinção da Delegação da Junta de Exportação do Café, proclamando: - "Moçambique não podia produzir café, só chá, e Angola não podia produzir chá, só café".
Boa tarde Sr.Brando
ResponderEliminarSou neta do Adrião Faria Gonçalves, li o seu artigo com interesse, no entanto na nossa família não se comenta que o meu avó se suicidou, mas sim que morreu de doença, gostava de saber onde recolheu essa informação, é possível que seja verdade.
Cumprimentos,
Alexandra G. Faria Gonçalves Ramos
Sra. Alexandra Faria
ResponderEliminarNesta página poderá encontrar a fonte da citação que questiona.
Desde já lamento qualquer incómodo que a mesma possa ter provocado e, caso manifeste vontade, estarei disponível para a eliminar no artigo.
Aguardando alguma orientação sua, aceite os meus respeitosos cumprimentos.
Sr. Brando
ResponderEliminarFoi confirmar com os filhos de Adrião de Faria Gonçalves, que ficaram muito indignados com os escritos a cerca do suicídio do pai, de facto não corresponde à verdade. Adrião Faria Gonçalves foi um homem muito lutador até ao fim da sua vida, morreu de angina de peito. Naquela época para fazer face às dificuldades financeiras plantou tabaco, milho entre outras coisas, continuou a plantar café mas vendia apenas para mercearias locais, por imposição da lei não podia exportar para fora do país.
Vamos tentar esclarecer o Sr. A. J. Bettencourt para que não diga que o meu avó se suicidou, porque não é verdade.
Desejo-lhe bons escritos e felicidades.
Cumprimentos,
Alexandra Faria Gonçalves Ramos
Sra. Alexandra Faria
ResponderEliminarCompreendo a indignação e muito agradeço as informações prestadas, pelo que já procedi à reformulação que se impõe no texto da minha mensagem.
Caso aceite a sugestão, poderá consultar o trabalho publicado neste endereço, uma vez que o mesmo resulta também como um testemunho esclarecedor da excepcional dimensão do perfil do seu avô.
Apresento vivas desculpas e os meus respeitosos cumprimentos.