segunda-feira, julho 23, 2007

VENTO DE MUENDE

Foi um vento que irrompeu da serra de Muende e trouxe a chuva que encharcou a paisagem.
A chuva escorreu dos penedos altos, em turbilhão; desceu pelos declives, entrou em caminhos abertos pela impetuosidade de antigas enxurradas espumando na queda, sobre pedras, gritava zangas terríveis.
Na quietude do silêncio ouvia-se o rumor de "kulirima" que reboava distante, surdo, num ranger de terramoto sobre a montanha. De quando em vez rasgava os céus"chipoliuale" a iluminar a noite fria e negra para que se visse a natureza, lívida, molhada e transida.
Suavizada a tempestade chega até mim o cheiro morno, intenso, do capim novo, verde, ondulante.
No fruir da bonança surge a tua imagem, o teu corpo, entregue a si mesmo e frágil devido às torrentes diluvianas com que a vida te açoitou; pressente-se uma alma inacabada, por tão jovem, mas já desfeita pelo desgosto.
Contas-me que abandonaste a "machamba" de ouro branco e partiste para a ilha de Moçambique, passaste por Quelimane, foste a Tete e paraste na Beira. Ali recebeste os Outubros soalheiros depois de teres viajado em dongos feitos de troncos de árvore que as correntes do Zambeze arrastaram.
Bebeste as chuvas torrenciais, de muitos Novembros, que encharcaram tudo até aos abismos mais profundos e assim soubeste da terra sedenta, finalmente a rejeitar a febre das secas que lhe haviam consumido as entranhas. Disseste-me então que ouviste o turbilhão gritar de novo nas montanhas, como um aviso de destruição. Viste os rios transbordarem e calarem os fios de água que pelos caminhos contavam, tagarelas, de pedra em pedra, histórias que só os poetas entendem.
Em noites de sombras densas escutaste os tã-tãs em batucada nervosa ou em rufar triste, na invocação dos espíritos, junto ao embondeiro sagrado, pedindo a protecção de "Molungo" para que o chão fosse fonte de riqueza. No ritual olhaste as raparigas nuas a marcar a sua presença, pujantes de mocidade, oferecendo cantares para serem mães. Viste igualmente os homens, frescos e atléticos, dando aos quadris num gingar obsceno, de lanças erguidas nas mãos fortes, cabeça emplumada, tanga a esconder o sexo. Em círculo rodeavam a fogueira, batendo mais rijo os calcanhares no solo que endurecia. Eles gritavam e gingavam, em movimentos de recuo e avanço, com as lanças ameaçadoras dirigidas ao fogo em gesto de expulsão dos maus espíritos. Todos escorriam fadigas mas eram belos, como bronzes polidos. E alargavam o espaço entre si e a fogueira maior. Abriam alas e por entre eles dançavam mulheres, em bambolear lento, lascivo, fazendo o sangue bater o coração mais forte.
Dançavam! Primeiro indolentes, depois mais rápidas até que a dança atingia o delírio. Mais alucinante ainda era quando se confundiam os gritos e os movimentos dos bailarinos que se metiam entre elas. E tu, kulirima, chipoliuale e Molungo, gritaste com eles tocado por essa comunicação de vida que te inunda a carne de compreensões e equívocos.
Ali choraste o teu amor cuja perda te fez abraçar a raiva e ficar como a chuva, espumando na queda e a gritar zangas terríveis qual som do trovão sobre a montanha.
Perdi-te na tempestade.
Posso dizer-te agora que a chuva vai e volta. Kulirima continuará a gritar cóleras mas o húmus faz germinar vidas renovadas, mais fortes, fermentações de coisas mortas que são a razão de coisas vivas. Posso dizer-te também, agora, que nesses elementos se processa o retorno do que foi e torna a ser – de novo – pujante e belo o enamoramento do qual o homem não se cansará nunca!
Procuro-te com o olhar mas és uma miragem...
Choro também o meu amor, suspenso, a desprender-se, tão fustigado que foi por esse vento de Muende que o tornou inútil.
Sinto os olhos inundados de cansaços e saudade.
Peço a Molungo que volte e traga o vento de Muende em bonança, em sopro suave, em sussurro e te beije em carícias ora lentas, carinhosas ou delirantes, como os movimentos de quem baila no ritual.
Peço a Molungo que traga de novo o vento de Muende em afago terno, como o cantar dos fios de água, para te acordar com brandura.
Peço a Molungo que te ofereça a brisa suave que faz ondular os campos, para que possas, de novo, sorrir e abraçar o amor.
Peço a Molungo que te devolva à vida se não puder trazer-te a mim!

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Muende - serra em Moçambique
Kulirima = trovão
chipoliuale = relâmpago
Molungo = Deus

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  • Texto de MARIA JOSÉ PERES, dedicado a um amigo que em Moçambique viveu e amou.
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sábado, junho 30, 2007

CANTO DA POESIA: - Um leão ladeia

UM LEÃO LADEIA *

Um leão ladeia
as portas do teu ânimo de ferro
Séculos e séculos esbatem
o relevo das garras
nas esferas de pedra
Quem o olha imobiliza-se
vendo-o com uma esfíngica
expressão de antiguidade
Nos globos oculares que a areia corroeu
há mesmo um gladiador espelhado
E nem a juba se acama, dócil
à ideia de que a tua mão acaricia
Um leão ladeia
as portas do teu ânimo de ferro.


* - Poema de O Ritmo do Presságio, um dos livros de Sebastião Alba, pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves. Quer o trabalho em causa, quer ainda A Noite Dividida e O Limite Diáfano, constituem as obras poéticas de Sebastião Alba com maior visibilidade, emanando das mesmas os poemas seleccionados para integrar a antologia UMA PEDRA AO LADO DA EVIDÊNCIA, publicada pela editora Campo das Letras.

Sebastião Alba nasceu em 1940, na cidade de Braga, onde também acabou por falecer em Outubro de 2000, vítima de atropelamento. Conforme vontade manifestada, repousa em Torre de Dona Chama, localidade situada em Trás-os-Montes.

Entretanto, ainda muito jovem rumou a Moçambique, aí vindo a permanecer grande parte da sua vida. Quando radicado em Quelimane, em 1965 publicou o seu primeiro livro, intitulado Poesias.


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segunda-feira, maio 28, 2007

MEMORIAL DE QUELIMANE: III - Almadia "Iole"

Do poema Nossas Vidas São Os Rios, de Luis G. Urbina:

"Eu tinha uma só ilusão: era um manso
pensamento: o rio que vê próximo o mar
e quisera um instante converter-se em remanso
e dormir à sombra de algum velho palmar. "
(...)
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A Baixa Zambézia é vincadamente marcada pelas bacias hidrográficas dos seus principais rios, precisamente Zambeze e Licungo, a cada passo proliferando braços fluviais. Neste contexto, a singular almadia, pequena embarcação construída a partir de um tronco de árvore, sempre desempenhou um papel relevante na pesca artesanal e, não raras vezes, fundamental no transporte ligeiro.

O meu baptismo em viajar de almadia remonta ao período de infância inicialmente vivido na Barra, precisamente uma das estações de elaboração de copra a partir dos palmares circundantes detidos pela Madal, e situada na zona costeira de Micaúne.
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