Foi um vento que irrompeu da serra de Muende e trouxe a chuva que encharcou a paisagem.
A chuva escorreu dos penedos altos, em turbilhão; desceu pelos declives, entrou em caminhos abertos pela impetuosidade de antigas enxurradas espumando na queda, sobre pedras, gritava zangas terríveis.
Na quietude do silêncio ouvia-se o rumor de "kulirima" que reboava distante, surdo, num ranger de terramoto sobre a montanha. De quando em vez rasgava os céus"chipoliuale" a iluminar a noite fria e negra para que se visse a natureza, lívida, molhada e transida.
Suavizada a tempestade chega até mim o cheiro morno, intenso, do capim novo, verde, ondulante.
No fruir da bonança surge a tua imagem, o teu corpo, entregue a si mesmo e frágil devido às torrentes diluvianas com que a vida te açoitou; pressente-se uma alma inacabada, por tão jovem, mas já desfeita pelo desgosto.
Contas-me que abandonaste a "machamba" de ouro branco e partiste para a ilha de Moçambique, passaste por Quelimane, foste a Tete e paraste na Beira. Ali recebeste os Outubros soalheiros depois de teres viajado em dongos feitos de troncos de árvore que as correntes do Zambeze arrastaram.
Bebeste as chuvas torrenciais, de muitos Novembros, que encharcaram tudo até aos abismos mais profundos e assim soubeste da terra sedenta, finalmente a rejeitar a febre das secas que lhe haviam consumido as entranhas. Disseste-me então que ouviste o turbilhão gritar de novo nas montanhas, como um aviso de destruição. Viste os rios transbordarem e calarem os fios de água que pelos caminhos contavam, tagarelas, de pedra em pedra, histórias que só os poetas entendem.
Em noites de sombras densas escutaste os tã-tãs em batucada nervosa ou em rufar triste, na invocação dos espíritos, junto ao embondeiro sagrado, pedindo a protecção de "Molungo" para que o chão fosse fonte de riqueza. No ritual olhaste as raparigas nuas a marcar a sua presença, pujantes de mocidade, oferecendo cantares para serem mães. Viste igualmente os homens, frescos e atléticos, dando aos quadris num gingar obsceno, de lanças erguidas nas mãos fortes, cabeça emplumada, tanga a esconder o sexo. Em círculo rodeavam a fogueira, batendo mais rijo os calcanhares no solo que endurecia. Eles gritavam e gingavam, em movimentos de recuo e avanço, com as lanças ameaçadoras dirigidas ao fogo em gesto de expulsão dos maus espíritos. Todos escorriam fadigas mas eram belos, como bronzes polidos. E alargavam o espaço entre si e a fogueira maior. Abriam alas e por entre eles dançavam mulheres, em bambolear lento, lascivo, fazendo o sangue bater o coração mais forte.
Dançavam! Primeiro indolentes, depois mais rápidas até que a dança atingia o delírio. Mais alucinante ainda era quando se confundiam os gritos e os movimentos dos bailarinos que se metiam entre elas. E tu, kulirima, chipoliuale e Molungo, gritaste com eles tocado por essa comunicação de vida que te inunda a carne de compreensões e equívocos.
Ali choraste o teu amor cuja perda te fez abraçar a raiva e ficar como a chuva, espumando na queda e a gritar zangas terríveis qual som do trovão sobre a montanha.
Perdi-te na tempestade.
Posso dizer-te agora que a chuva vai e volta. Kulirima continuará a gritar cóleras mas o húmus faz germinar vidas renovadas, mais fortes, fermentações de coisas mortas que são a razão de coisas vivas. Posso dizer-te também, agora, que nesses elementos se processa o retorno do que foi e torna a ser – de novo – pujante e belo o enamoramento do qual o homem não se cansará nunca!
Procuro-te com o olhar mas és uma miragem...
Choro também o meu amor, suspenso, a desprender-se, tão fustigado que foi por esse vento de Muende que o tornou inútil.
Sinto os olhos inundados de cansaços e saudade.
Peço a Molungo que volte e traga o vento de Muende em bonança, em sopro suave, em sussurro e te beije em carícias ora lentas, carinhosas ou delirantes, como os movimentos de quem baila no ritual.
Peço a Molungo que traga de novo o vento de Muende em afago terno, como o cantar dos fios de água, para te acordar com brandura.
Peço a Molungo que te ofereça a brisa suave que faz ondular os campos, para que possas, de novo, sorrir e abraçar o amor.
Peço a Molungo que te devolva à vida se não puder trazer-te a mim!